16 de jan. de 2009

"Mais um Luto" (do Blog da Soninha)

Infelizmente continuando o post anterior da ciclista morta em SP....

Esse texto tirei do Blog da Soninha blogdasoninha.folha.blog.uol.com.br

Sim,é ela mesmo que concorreu a vaga de Prefeita da cidade de São Paulo,e que inclusive apóia a bicicleta como meio de transporte....

É um texto um pouco longo,mas leiam que não irão se arrepender....


14/01/2009

Mais um luto

Justo hoje, um amigo mandou o link desta matéria exibida na Globo...
Por que "justo hoje"?


Porque morreu uma ciclista na Paulista, atropelada por um ônibus. Tinha a minha idade. Assim que me contaram, imaginei que era alguém que eu conhecia, mas a notícia não trazia o nome - aliás, falava mais dos efeitos no trânsito do que do fato de haver uma pessoa sem vida no asfalto.

Não deu outra - logo depois, disseram que era da Bicicletada, tinha assinado o Manifesto dos Invisíveis...

Algumas reações, como não é raro acontecer, foram do tipo "também, o que ela estava fazendo ali?"Estava, vejam só, se locomovendo em um veículo não motorizado. Que absurdo, não?

Um veículo que ocupa muito menos espaço, não faz barulho, não queima combustíveis fósseis nem biodiesel nem etanol. Que tem um poder letal milhares de vezes menor que o de um automóvel (que mata por atropelamento, colisão, pela fumaça do escapamento, por estresse). Um veículo antigo, muito indicado para os problemas de espaço, sedentarismo e isolamento do mundo moderno. Ah, sim, e como maneira simplíssima e eficaz de reduzir as emissões de carbono e ajudar a amenizar os efeitos terríveis do aquecimento global.

A bicicleta não é um meio de locomoção excêntrico, "radical". Eu não sou atleta e pedalo por aí, vencendo pequenas distâncias. Não é coisa de jovens malucos e irresponsáveis. É o veículo de pedreiros, garçons, porteiros, seguranças, muitos estudantes e alguns professores. E está contemplada no Código Brasileiro de Trânsito, que diz que ela pode - deve - circular no leito carroçável. E como é muito frágil, como tem uma pessoa em cima dela sem muito anteparo e a comparação/competição com uma lata de muitas toneladas se deslocando a 16 metros por segundo, mil por minuto, sessenta por hora lhe é bastante desfavorável, a norma legal prevê que uns mantenham distância razoável dos outros - isto é, um metro e meio.

Mas aquelas pegadinhas bestas que fazem no teste para condutores de automóveis nunca perguntam essas coisas. E a gente anda por aí e ouve motorista gritar: "Vai pra calçada!". E precisa ficar esperto porque mesmo com o trânsito parado, mesmo com o carro lerdo ou parado no caminho da bicicleta e não o contrário, tem carro que se atira pra cima da bicicleta como a orca sobre as focas, simplesmente por raiva, implicância, impaciência (a orca tem fome, é seu destino).

(Um amigo meu perguntou, certa vez, para um motorista que o atacou com o carro: "Você é louco, você não pensa que podia ter me matado?". Resposta: "Sai daqui! Vocês riscam o meu carro, sai daqui!").

Ai, tá bom, tem ciclista louco, tem ciclista que não respeita ninguém, que ameaça os pedestres, que se comporta irresponsavelmente, perigosamente. Mas será que não devemos reconhecer que tem mais ciclista que morre com a bicicleta do que ciclista que mata com ela? O motorista do ônibus foi inacreditavelmente frio em seu depoimento (caso tenha sido bem reproduzido na matéria do Globo). "Tenho a consciência tranqüila. Lamento muito a morte de uma pessoa, mas sei que eu não tive culpa".

Pode até ser negação diante do choque, mas tenho sérias dúvidas. Ele conta que a ciclista estava no meio da faixa, ele avançou para a segunda faixa para ultrapassá-la. Quando retornava para a faixa da direita, ouviu o barulho e parou.
Digamos que ele tenha sido muito prudente, cuidadoso, consciente. Que não tenha jogado o ônibus de um lado para o outro abrupta e violentamente. Então foi muito, muito barbeiro. Ele não foi capaz de calcular a distância necessária para ultrapassar uma bicicleta. Ele voltou o carro pra pista muito antes do que deveria, e acertou em cheio a ciclista. É um erro tolerável?

Alguém que conduz dezenas de pessoas por aí pode ter essa noção tão errada do tamanho, peso e velocidade do veículo.E tem outra coisa: quando uma pessoa "normal" (meu conceito de normal) se envolve na morte de alguém, mesmo que seja totalmente por acaso, sem nenhuma intenção, sem a mais remota responsabilidade, essa pessoa se sente muito mal. O jornaleiro que vendeu uma revista pra ela cinco minutos antes pensa "Por que eu não demorei mais para entregar o troco?". O namorado se pergunta "Por que eu não insisti pra ela tomar mais um suco?". O passageiro do ônibus se tortura: "Por que eu não gritei antes?".
Minha amiga Quitéria, a famosa Quitéria de vários dramas, uma vez estava em um microônibus que atropelou um idoso. Entrou em choque, me ligou chorando convulsivamente: "Eu vi, eu vi o velhinho atravessando, ele também viu, ele jogou de maldade, de maldade. Por que eu não gritei? Por que ninguém fez nada? O motorista não ficou nem aí, te juro. Ele nem ligou. Ele matou o velhinho".

Ano passado eu estava na 9 de julho no momento em que tinha acabado de acontecer um atropelamento no corredor de ônibus. Os passageiros ainda desciam. O motorista, eu via do outro lado da avenida, se desesperava sobre o volante. Chorava tanto que os ombros chacoalhavam. Se ele teve culpa? Talvez não! Mas ele tinha acabado de matar alguém, e sua vida acabou um pouco ali também.

Como pode, tanta maldade, tanta desconsideração, tanta indiferença? Pode alguém ficar "tranqüilo", "eu sei que não tive culpa"? A gente sente culpa até quando não tem!
A cidade precisa de condições melhores para as bicicletas (embora alguns ainda defendam bani-las, proibi-las, confiná-las aos parques, velódromos, quem sabe eternamente aos ganchos nas garagens dos edifícios). Precisa de ciclovias onde isso é indicado, necessário e viável; em outros lugares, de faixas assinaladas no solo ou apenas de rotas sinalizadas. Mas precisa mais do que tudo de noção de humanidade. Da nossa dimensão, da nossa fragilidade. Atrás de um volante, em cima de uma moto ou de uma bicicleta, andando a pé ou de skate, são pessoas que estão ali. PESSOAS. Com pessoas, a gente precisa ter muito cuidado. Pessoas quebram, machucam, sofrem, fazem falta.

Uma vez, um guarda parou uma picape que ia pela estrada a uns 150 por hora. Foi autuar o motorista e viu que, no banco de trás, havia uma criança dormindo. Sarcasticamente, disse que talvez nem o multasse - se ele não se importava com o filho, não tinha mais o que fazer com ele. E acrescentou: "Se você estivesse dirigindo com uma televisão sobre o assento, tomaria o maior cuidado para ela não tombar. Mas como é só uma criança...".

Quem sabe devêssemos fazer um laboratório. Um dia, sair dirigindo com alguma coisa "preciosa" no banco do carro ou do ônibus: uma TV de plasma, um computador, um aparelho de som invocado. E depois disséssemos aos motoristas: "Da próxima vez que você sair por aí com pessoas no carro, finge que elas são esses objetos".

Abs.


2 comentários:

senfina disse...

Muito bom o texto!

Anônimo disse...

Pois é Ramiro, pedalei sozinho neste domingo, dia 18, pois meu horário não dava para ir com a turma... e para não ser diferente de alguns dias "tiraram uma fina" de mim... paciencia... ser humano (alguns) não respeita o semelhante. Tanto espaço na rua e um cidadão adora fazer "graça". E olha que o horário que estava pedalando era antes das 07h30. Vamos com calma, atenção e paz, sempre! Abraço.